Quem defenderia um sistema que lhe desumaniza? O que podem indicar as lentes freireanas sobre o Sistema de Justiça Criminal
Ela explicava, explicava
Querendo que eu criasse um interesse num
Mundo que não tinha nada a ver com o meu
Não sei se a escola aliena mais do que informa
Te revolta ou te conforma com as merdas que o mundo tá
Nem todo livro, irmão, foi feito pra livrar
Depende da história contada e também de quem vai contar
Pra mim contaram que o preto não tem vez
E o que que o Hip-Hop fez? Veio e me disse o contrário
“Pedagoginga”- Kmlz, Sant e Thiago Elniño
A síntese do Sistema de Justiça Criminal de acordo com os dados contemporâneos, especialmente do Departamento Penitenciário Nacional, Conselho Nacional de Justiça e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que indicam informações como o perfil carcerário nacional, o estereótipo que atrai os olhares do braço armado do Estado, assim como -e principalmente- quem julga e compõe os espaços de poder que determinam como gira o nosso modelo de democracia vigente, nos permite captar o retrato de como se estruturou a democracia do nosso país. Erguida sobre as desigualdades de classe, raça e gênero, conforme indica Silvo Almeida em seu livro Racismo estrutural (2021, p. 97):
Portanto, entender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual. A relação entre Estado e sociedade não se resume à troca e produção de mercadorias; as relações de opressão e de exploração sexuais e raciais são importantes na definição de intervenção do Estado e na organização dos aspectos gerais da sociedade.
Seguindo essa perspectiva, nos presídios há uma população majoritariamente negra e com baixo grau de escolaridade. No Supremo Tribunal Federal, espaço que retrata o ápice da escala de poder desse sistema, há uma representação do que se perpetua por todas as instâncias do judiciário :Quem julga a maioria dos processos do nosso país são homens brancos de classe média/alta. Cumpre salientar que, com a presença histórica de Joaquim Barbosa no período de 2012 a 2014 como primeiro e único presidente negro do Supremo, foi-nos permitido começar a visualizar novas configurações nos espaços de poder. Ainda assim, durante os 130 anos de existência do STF, apenas três pessoas negras passaram por aquele espaço. Até a presente data, apenas 03 mulheres passaram pelas 11 cadeiras da suprema corte e todas eram brancas. Essa desproporcionalidade torna-se gritante quando,
conforme os dados do IBGE do senso de 2022, 56,1 % das pessoas residentes no nosso país se declaram pretas ou pardas e 50,1% da população é composta por mulheres. Além da segregação estruturante, é importante expor em “números” a divisão que há nos espaços que comandam a estrutura de privilégios e na base que “sustenta” tal estrutura. Mesmo se tratando de temas bastante rebatidos dentro dos ambientes de pesquisa na contemporaneidade, ainda há uma interpretação de sutilezas para mecanismos que possuem uma forte característica reprodutora da estrutura mencionada, que vão de encontro às denúncias que os dados fazem.
Quando a sociedade entra em contato, ainda que de uma maneira superficial com esses discursos que atacam a estrutura, até mesmo porque temas como racismo e violência de gênero se tornaram mais veiculados nas mídias de massa, ainda é comum induzir ao pensamento de que “o oprimido é quem mais defende sua própria opressão” ou de certa forma, tornar a classe oprimida responsável pela violência que sofre através do pensamento de que possuem plena possibilidade de escolha, com o discurso da meritocracia.
É possível vislumbrar uma rede ideológica que associa a violência e principalmente o desrespeito a norma a uma classe, a uma cor e a determinados “territórios” das cidades. No contexto do cárcere, mesmo quem é vítima do sistema, por muitas vezes, defende sua existência, mas isso não torna as condições desumanas do cárcere legais. A distribuição das minorias dentro dos espaços de poder é um indicativo da seletividade, contudo, propostas com potência de mudar a estrutura não parecem ser propagadas com frequência. E é nesse sentido que pretende-se trazer as lentes Freirianas para o Sistema Penal. Ainda que a construção teórica de Paulo Freire se destine a pedagogia crítica e a metodologia de alfabetização popular, o “aprender a ler” dentro da sua proposta, é peça fundamental da libertação da classe oprimida. Por isso, é possível perceber que o Autor constrói uma linha de pensamento sobre a estrutura dominante que nos permite compreender o que impulsiona a defesa da estrutura que nos esmaga e submete a violências diárias.
Dessa forma, não é desconexo se questionar por que pessoas desumanizadas, egressas do sistema de justiça criminal ou até mesmo hoje encarceradas, não defendem o fim da prisão. Nem tampouco questionar o que nos faz defender um sistema que produz o que tememos que é a violência sobretudo física. Afinal, o que nos deixa “confortável” em ciclos de reprodução de violência mesmo quando somos a vítima dela?
E é nesse momento que as lentes freirianas tornam mais nítidas a perpetuação do ciclo de opressão. Em Pedagogia do Oprimido (1970, p. 148) é suscitada a ambiguidade da pessoa oprimida. Aquele que ocupa o espaço de dominação projeta no oprimido parte de si. Resumidamente, as pessoas exploradas são movidas pelo desejo de se tornar quem oprime, não exclusivamente pela força de oprimir, mas principalmente por desfrutarem de privilégios. Quem não gostaria de desfrutar de conforto?
Nesse sentido, o oprimido é hospedeiro do próprio sentimento de repressão que sofre. E por isso Freire (1970) afirma que a revolução precisa ser cultural. O Espaço que o oprimido
Ao mesmo tempo, quando observados os mecanismos anteriormente citados por “lidos de forma sutil”, tratados por Althusser como aparelhos ideológicos do Estado, vislumbramos como a sonegação de informações nas formações básicas da sociedade, não só por ausência de criticidade, mas pela indisponibilidade da verdadeira história do nosso país, é organizada para proteção dessa estrutura. Não há como preencher o espaço do opressor no oprimido com a sua própria cultura se ela vem ao longo dos anos sendo apagada e retirada de quem a constrói. A história contada nas escolas não é a do povo brasileiro, os costumes, o estilo de vida e até mesmo os sonhos são manipulados para a principal finalidade do Estado: manutenção da posição de quem desfruta dos privilégios.
A indignação do oprimido com o tratamento recebido na relação de opressão ao mesmo tempo que teme a inexistência da figura do dominador, tendo em vista que assumirá toda a tarefa de gerenciamento da estrutura “perdido” no suposto desconhecimento intencionalmente causado pelo sistema; se assemelha com o receio da população de sobreviver sem a figura da prisão, da repressão policial mesmo temendo . Estamos livres do opressor que hospedamos?
Por isso importa chamar para a discussão os aparelhos ideológicos do estado, mas de uma perspectiva transgressora. Ao invés de visualizá-los apenas como peças do estado a fim de manter sua posição de dominação, deve-se aproveitar a estrutura já estabelecida e mantida financeiramente pelo próprio Estado, para minar sua própria estruturação seletiva. Irrestritamente nos espaços de poder não só “ocupar”, mas ocupar com a cultura sonegada fortalecida e reivindicando sua perpetuação. As transgressões quando atingidas dentro do sistema que se pretende extinguir serão sempre lidas como criminalidade, foi assim durante toda a história. Até mesmo porque, se quem ocupa os espaços de poder é quem define o que é criminalidade, qualquer ação que ataca a manutenção da engrenagem opressora, ameaçam sua existência e precisa ser contida por quem precisa da estrutura vigente para desfrutar do conforto.
Contudo, não se quebra ciclos de opressões sem incômodos ou ameaça do conforto de quem domina. Por isso, não é só o investimento em educação que pode transformar a realidade carcerária, mas sim a educação libertadora, como mencionado na letra da música do início, “Nem todo livro, irmão, foi feito pra livrar depende da história contada e também de quem vai contar”.
Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2018/09/Perfil-Sociodemogr%C3%A1fico-dos-Magistrados.indd_.pdf Acesso em: 24 jul. 2021.
DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: período de julho a dezembro de 2019. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMmU4ODAwNTAtY2IyMS00OWJiLWE3ZTgtZGNjY2ZhNTYzZDliIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 11 mar. 2021.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. In: ALTHUSSER, Louis.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 13ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade, 54ª ed. – Rio de janeiro: Paz e Terra, 2022.
ALMEIDA, Silvio Luiz de Almeida. – São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
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